Resenha - Véspera

sexta-feira, 1 de março de 2024

 


Entre as minhas metas quantitativas do ano estão: ler 10 livros e publicar 5 textos. Acho que não estou roubando se eu juntar as duas coisas, né?!

Como falar de ‘Véspera’? ~ não contém spoilers.

Ano passado buscava uma leitura diferente e cheguei em ‘Tudo é Rio’, da Carla Madeira. A princípio o que mais me motivou foi sair da mesmice de literatura estrangeira e o fato de ser uma autora mulher. Mas ‘Tudo é Rio’ foi muito mais do que isso. Não cheguei a escrever sobre ele e acho que nem consigo agora, depois de tantos meses. Mas fato é que fui imersa e levada nessa correnteza, com o perdão do trocadilho. Fiquei encantada pela escrita da Carla e sedenta por mais – será que foi a sorte de um livro de estreia ou ela sustentaria isso em outras histórias? ‘Véspera’ não me decepcionou. Encontrei o mesmo fôlego de leitura, página após página. Honestamente, não sei dizer qual gostei mais. Um me ganhou mais pelo fim, o outro pelo desenrolar da trama. Indico ambos a quem quiser se jogar numa nova experiência de leitura.

‘Véspera’ é um romance de ficção, sem ficção nenhuma. Na verdade, traz uma realidade quase palpável. A história começa em uma manhã comum e repetitiva na vida de Vedina, uma mulher aparentemente bem sucedida, com um filho de 5 anos e um casamento fracassado com Abel. O início é muito rápido, em poucas páginas você é atropelado pelo nível de cansaço e angústia de Vedina. O marido que não ajuda em nada e nem sequer mais dorme na mesma cama que ela, a rotina, a sobrecarga, o cansaço, uma mulher despedaçada, e Augusto com 5 anos e energia de sobra. Com a correria das primeiras horas do dia entre se arrumar, arrumar o filho e a bagunça da casa, num momento de descontrole, no ápice do seu estresse, Vedina abandona Augusto numa rua movimentada de mão única. Em coisa de segundos, imediatamente ela se dá conta da sua atitude, se arrepende e dá a volta no quarteirão para busca-lo. O menino não está mais lá.

Carla Madeira flerta o tempo todo com o indizível intransponível, com o pecado imperdoável, ao mesmo tempo que nos faz sentir afeição e asco pelo pecador. Ela tem a capacidade de descrever e desnudar – por vezes literalmente – seus personagens, de forma que atingimos um nível de intimidade incômoda com eles. Ela sabe aguçar a curiosidade, trazendo uma leitura ávida, seja pelo prazer transcorrido, seja pela necessidade de se resolver o entrelaçado apresentado. Mas, não se engane, ainda que com fluidez, não é uma leitura fácil, há peso e densidade em cada página. Considero-me uma pessoa com um bom vocabulário, ainda assim, neste livro me vi por muitas vezes buscando por novas palavras no Google. Não que o contexto não fosse capaz de traduzir, mas por serem realmente novas pra mim. Um abraço à Carlinha por essas adições.

A estrutura da narrativa apresentada é intercalada capítulo a capítulo com focos distintos. Já vi outros autores utilizarem deste artifício com bastante sucesso para fomentar a curiosidade e manter a leitura (Dan Brown escalonou ‘O código da Vinci’ desta forma), assim como também a presença de flashbacks (em ‘A mulher do viajante no tempo’, por exemplo). Mas a autora traz isso muito evidenciado em ‘Véspera’, de uma forma que eu nunca tinha visto. No início do livro a sensação é de se estar acompanhando duas histórias distintas, até que, de maneira rápida e muito natural, percebe-se que é uma coisa só. A história “atual” - segue no presente, com desespero de Vedina pelo sumiço de Augusto – e a “outra” história, na véspera da véspera da véspera, com todos os acontecimentos que fizeram chegar até aquele momento. Os capítulos atuais são crescentes e curtos, onde em cada um vamos nos preocupando e vivendo a agonia da consequência de um ato impensado. Os capítulos de passado são decrescentes e longos, até chegarem no denominador comum.

Talvez seja batida a ideia do “efeito borboleta”, onde pequenos atos podem refletir no rumo das coisas drasticamente. Mas é muito interessante acompanhar essa narrativa numa família tipicamente brasileira, com as singularidades e complexidades de cada personagem. Em quase 300 páginas o leitor é exposto ao núcleo familiar e adjacências de Custódia, uma crente fervorosa, com seu marido Antunes, imerso no alcoolismo desde sua infância, e seus filhos gêmeos, com o destino marcado por uma decisão infeliz.

O final me pegou de surpresa e talvez tenha ficado um tanto distante da minha expectativa, mas desapeguei. Este não é um livro sobre finais. É um livro sobre a véspera deles.